domingo, 6 de dezembro de 2009

Irom Man 3000 A.C.


“Do alto da colina, Trtlt contemplou o cenário, e ponderou suas opções. Poderia seguir em frente, atravessando o lago, e fazer assim o caminho menos longo; ou, poderia desviar-se para o lado em que o sol nascia, e contornar o mesmo lago ao invés de ter que enfrentar a água gelada, fazendo um caminho, para ele, longo demais.
Era possível ainda, pensou, fazer meia volta, caminhar sobre seus passos, deitar novamente ao lado de Mlhr, e deixar-se hipnotizar pelo fogo que aquecia sua caverna. Era possível, mas irreal, porque sua barriga, e as barrigas de Mlhr e dos 3 filhos pequenos, já estavam ficando vazias, e o estoque de carne de caça estava perigosamente baixo. Além do mais, o instinto de sobrevivência era maior que o pavor da água gelada, e muito maior que a preguiça.

Optou por seguir em frente. Sabia que naquela época as águas estariam frias, mas já havia sobrevivido ao frio e à distância antes - bastava, nos momentos difíceis, quando parecia que o frio e o cansaço iriam mandá-lo feito uma carcaça de urso para o fundo do lago, lembrar dos rostos sorridentes de seus filhos, e das pauladas que Mlhr lhe daria na cabeça se não levasse comida para casa, que forças ocultas lhe brotavam.

E assim Trtlt, contrariado, amarrou sua lança de caça aos pés, mergulhou na água gelada, e nadou. E nadou, nadou e nadou. E quando achou que já tinha nadado muito, nadou mais um pouco. E quando lhe pareceu que já tinha nadado demais, nadou ainda outro tanto. Algum tempo depois - uma eternidade para ele - tocou a margem. Exausto, deixou-se cair no cascalho, tiritando de frio, o peito arfando, pernas e braços entorpecidos. Ainda de olhos fechados, sentiu que os primeiros raios de sol vinham aquecer-lhe um pouco o corpo nu. Lágrimas, não sabia se de dor ou gratidão, brotaram subitamente, e subitamente desapareceram no rosto ainda molhado. Abriu os olhos. Fitou o céu. A lua já havia desaparecido, e se ele quisesse chegar à caverna antes dela voltar, teria que correr.

Pondo-se de pé, Trtlt começou a correr em direção a um vale salpicado de pequenos pontinhos negros. Ainda meio zonzo, continuou correndo até chegar bem perto dos pontinhos, agora materializados em belos e selvagens cavalos, e identificar um deles como sendo Baikh, sua fiel montaria. Trtlt precisaria de Baikh para atravessar as imensas planícies que o separavam de sua caça. Trtlt amava Baikh quase tanto quanto Mlhr. Talvez só não amasse mais porque Baikh não conseguia transportá-lo através do maldito lago.

Trtlt e Baikh seguiam pela planície, suas sombras cada vez menores. A cavalgada era a parte que Trtlt mais gostava, porque não ficava muito cansado. Mas o prazer que sentia ia diminuindo na medida em que se aproximavam do desfiladeiro. Trtlt sabia que nem Baikh, nem montaria nenhuma, conseguiriam seguir pelo desfiladeiro. E mesmo que conseguissem, do outro lado havia a escarpa, íngreme demais para a maioria dos homens, impossível para um cavalo. Na verdade, Trtlt sabia que somente um homem com muita fome, e com muito medo de Mlhr, conseguiria passar por ali.

Chegando à base do desfiladeiro, Trtlt desmontou, empunhou sua lança, e espalmou a mão nas ancas de Baikh, que partiu em disparada. Daqui para frente ele seguiria a pè, e Baikh retornaria ao seu vale, e aos outros pontinhos pretos. Nessas alturas, Trtlt já praticamente não via mais sua sombra. Corria sobre ela, perdendo-a de vista em meio às folhas, galhos e pedras que havia na trilha, e em meio às suas visões da caça que perseguia. E Trtlt correu. Correu tanto que a pele dos pés ficou em carne viva, e suas pernas endureceram, e suas unhas caíram.

Trtlt agora era um animal, tomado por instintos de sobrevivência. Precisava Matar para Comer. Precisava Matar para não apanhar de Mlhr (o que, ele temia, podia ser pior que a própria morte). E precisava Matar também para mostrar aos caçadores das cavernas vizinhas que ele era O Cara. Se triunfasse, teria comida, teria Mlhr, e teria o respeito dos caçadores vizinhos. Se falhasse, levaria uma surra, morreria de fome, e viraria piada na boca dos vizinhos. Que, de quebra, ainda comeriam sua Mlhr.

Mas a lança de Trtlt foi certeira. Abateu a caça, que transportara sobre os ombros, e quando lhe faltaram as forças, arrastara atras de si, com um único golpe. Tinha agora comida para durar O Tempo Suficiente. Que era o tempo para ele esquecer o frio, o cansaço, a fome, o medo. Tempo para que ele voltasse a ter coragem e disposição para refazer o que estava fazendo. Tempo para que seu corpo o perdoasse.

Quanto Trtlt finalmente retornou aos seus, sua sombra, que ficara novamente longa, havia sumido por completo; o sol a tinha levado embora, junto com um último sopro de energia que Trlt nem sabia que possuia. Mas seus esforços não haviam sido em vão. Ele foi recebido, mais uma vez, como herói em sua caverna e em seu território. Seus filhos sorriam, Mlhr esfregou seu nariz no dele, e os vizinhos deram altos brados, erguendo seus tacapes. A missão de Trtlt estava cumprida.

Naquela noite, equanto Mlhr e seus filhos descansavam de tanto comer, e seus vizinhos, reunidos ao redor da fogueira, comentavam a respeito de sua bravura, Trtlt encaminhou-se novamente ao alto da colina, e voltou a contemplar o lago, tingido de prata pela luz da lua. Lembrou-se da água gelada, do cansaço, do medo, da dor. Erão tão maiores que ele, pensou. E mesmo assim os havia derrotado. Pensou em Baikh, que provavelmente agora também descansava, e encheu-se de gratidão. "Se um dia, Baikh, você for capaz de atravessar esse lago", disse ele para si mesmo "coloco você para dormir na cama, e ponho Mlhr para dormir no chão".

Antes de ir embora, Trtlt voltou-se ao pequeno altar de pedra que havia construído, colocou diante dele uma oferenda de carne que separara especialmente para a ocasião, e disse: - Deus dos Ventos, Deus do Sol, Deus da Água, Deus de Todos os Deuses....permitam que meus filhos, e os filhos dos filhos dos filhos de meus filhos, e os descendentes deles por cem gerações, não precisem passar por isso para viver. Livrai-os de nadar, cavalgar e correr tanto assim".

5.000 anos depois, do alto de sua colina, Trtlt nos observa. Só não sei se com admiração ou incredulidade.”

Fonte: Site Konabikes

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